quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Ler o mundo através da Arte: O sonho de Mateus, de Leo Lionni

.

.



Em 2013, duas décadas volvidas desde a sua edição original, é com a reconhecida chancela da Kalandraka que chega aos nossos escaparates um dos mais importantes clássicos do álbum literário para a infância (Roig Rechou, 2011) – e um dos últimos do autor: O sonho de Mateus, de Leo Lionni (1910-1999). Influenciadas pela estrutura fabulística, as histórias mundialmente premiadas e difundidas do ilustrador holandês − cuja notoriedade (quase) dispensa apresentações −, não só destacam uma visão humaníssima da infância, do mundo e da vida, como se impregnam de um cariz autobiográfico, alimentado por memórias da convivência com a arte e a natureza, num tempo livre de imposições.

Na senda de Frederico (Kalandraka, 2004), por exemplo, onde o leitor fora já confrontado com topoi basilares como o autoconhecimento ou a afirmação da identidade através da valorização da arte (e da literatura/poesia, no caso), a obra que nos ocupa é talvez a que mais intimamente retrata a experiência vivencial do criador. É na pele de um pequeno rato – personagem, aliás, predileta de Lionni − que se veste Mateus, o protagonista deste conto que sonha em «ver o mundo». E é quando visita pela primeira vez um museu que o descobre «inteiro», ali diante dos seus olhos, nos segredos e nos mistérios da obra artística. O seu poder contagiante e libertador permite, pois, a Mateus descobrir as suas aspirações e transformá-las numa realidade: abandonar o sotão humilde que habitava e tornar-se pintor.

Ode à diferença e à individualidade humana, este álbum não só aproxima o leitor infantil do processo artístico e criativo, promovendo a valorização da arte e a possível construção de um mundo interior, como alerta, simultaneamente, para a importância do universo onírico ou, nas palavras do autor, da representação de «um mundo alternativo que ajude a criança a organizar e estruturar a sua fantasia». Evocando obras de épocas e tendências variadas (e.g., o classicismo, o impressionismo, o cubismo ou o surrealismo), O sonho de Mateus inicia, pois, os mais novos numa educação estética e numa perspetiva crítica da arte, desabrochando os seus sentidos para diferentes modos de representação. Numa técnica mista que conjuga a pintura e o habitual recurso ao recorte e à colagem de papéis de diferentes cores e texturas, as ilustrações de Lionni, carregadas de simbolismo, aliado a um humor subtil, não só recriam com detalhe e expressividade os pontos-chave da diegese, como ultrapassam a mera repetição do texto, ampliando os seus sentidos e sublinhando a individualidade do pequeno herói. 
.
Um álbum particularmente admirável, ainda capaz de levantar uma velha discussão em torno da tríade artística e do objeto situado no centro da obra de arte: a expressão do artista ou a receção do espetador, eis a questão.

 Carina Rodrigues
Originalmente publicado em El Correo Gallego, a 19 de junho de 2013


Sem comentários:

Enviar um comentário