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Em 2013, duas décadas volvidas
desde a sua edição original, é com a reconhecida chancela da Kalandraka que
chega aos nossos escaparates um dos mais importantes clássicos do álbum literário para a infância (Roig
Rechou, 2011) – e um dos últimos do autor: O
sonho de Mateus, de Leo Lionni (1910-1999). Influenciadas
pela estrutura fabulística, as histórias mundialmente premiadas e
difundidas do ilustrador holandês − cuja notoriedade (quase) dispensa
apresentações −, não só destacam uma visão humaníssima da infância, do mundo e
da vida, como se impregnam de um cariz autobiográfico, alimentado por memórias da
convivência com a arte e a natureza, num tempo livre de imposições.
Na senda de Frederico (Kalandraka, 2004), por
exemplo, onde o leitor fora já confrontado com topoi basilares como o autoconhecimento ou a afirmação da
identidade através da valorização da arte (e da literatura/poesia, no caso), a obra que
nos ocupa é
talvez a que mais intimamente retrata a experiência vivencial do criador. É na
pele de um pequeno rato – personagem, aliás, predileta de Lionni − que se veste
Mateus, o protagonista deste conto que sonha em «ver o mundo». E é quando
visita pela primeira vez um museu que o descobre «inteiro», ali diante dos
seus olhos, nos segredos e nos mistérios da obra artística. O seu poder contagiante
e libertador permite, pois, a Mateus descobrir as suas aspirações e
transformá-las numa realidade: abandonar o sotão humilde que habitava e
tornar-se pintor.
Ode à diferença e à
individualidade humana,
este álbum não só aproxima o leitor infantil do
processo artístico e criativo, promovendo a valorização da arte e a possível
construção de um mundo interior, como alerta, simultaneamente, para a
importância do universo onírico ou, nas palavras do autor, da representação de
«um mundo alternativo que ajude a criança a organizar e estruturar a sua
fantasia». Evocando obras de épocas e tendências variadas (e.g., o classicismo, o impressionismo, o
cubismo ou o surrealismo), O sonho de Mateus inicia, pois, os mais novos
numa educação estética e numa perspetiva crítica da arte, desabrochando os seus sentidos para diferentes modos de
representação. Numa técnica mista que conjuga a pintura e o habitual
recurso ao recorte e à colagem de papéis de diferentes cores e texturas, as ilustrações
de Lionni, carregadas de simbolismo, aliado a um humor subtil, não só recriam com
detalhe e expressividade os pontos-chave da diegese, como ultrapassam a mera
repetição do texto, ampliando os seus sentidos e sublinhando a individualidade do
pequeno herói.
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Um álbum particularmente
admirável, ainda capaz de levantar uma velha discussão em torno da tríade artística
e do objeto situado no centro da obra de arte: a expressão do artista ou a receção
do espetador, eis a questão.
Carina Rodrigues
Originalmente publicado em El Correo Gallego, a 19 de junho de 2013
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